Reykjavik, capital da Islândia, que promove investida importante contra os ditames neoliberais que dominam o continente europeu (Flavio Aguiar/arquivo pessoal)
Por Flávio Aguiar via Rede Brasil Atual
Numa Europa conturbada, onde os direitos da cidadania estão em refluxo, varridos pelo "dilúvio de austeridade", a Islândia, na suas bordas, está dando uma lição de democracia. Sem perder de vista a austeridade.
Por Flávio Aguiar via Rede Brasil Atual
Numa Europa conturbada, onde os direitos da cidadania estão em refluxo, varridos pelo "dilúvio de austeridade", a Islândia, na suas bordas, está dando uma lição de democracia. Sem perder de vista a austeridade.
No sábado passado (20), houve um referendo no país sobre a nova Constituição a ser adotada. Esse referendo foi ainda conseqüência da crise financeira de 2007/2008, e da situação política gerada desde então.
A
Islândia, com décadas de governos conservadores, adotou políticas
extremamente neoliberais no começo do século XXI. Para começar,
privatizou seu sistema bancário, predominantemente estatal até
então. Adotou impostos mínimos sobre o capital. Desregulamentou
inteiramente relações de trabalho.
Enfim,
uma festa. A menina dos olhos do capitalismo vitorioso na Guerra
Fria, herdeiro de Margareth Tatcher, da Escola de Chicago, um paraíso
fiscal sem ser no Caribe.
Enfim,
foi um desastre. Com a crise bancária e financeira nos Estados
Unidos, em 2007/2008, a Islândia foi o primeiro país a quebrar. Os
capitais, antes tão bem-vindos, evaporaram. Seus três bancos mais
importantes faliram. O desemprego se alastrou de maneira fulminante.
Pessoas dormiram no anoitecer de 8 de outubro de 2008 empregadas e
acordaram no dia 9 desempregadas, sem seguro desemprego, sem
seguridade social, sem nada. Muitas tiveram de deixar o país.
Ao
mesmo tempo em que o desemprego se alastrava, chegando a 10% em 2010,
também se alastrou uma gigantesca onda de protestos. Gigantesca:
vamos pôr em perspectiva. A Islândia tem 320 mil habitantes. Sem
preconceitos para qualquer dos lados, toda ela é do tamanho de
Vitória. Dois terços vivem na capital, Reykjavik, ou em seu
entorno. Mais ou menos como em Palmas, a menor capital estadual
brasileira.
Pois
num país com esse tamanho diminuto, multidões de 5, 6 mil pessoas
começaram a se reunir diante do Parlamento. E pessoas furiosas. Suas
poupanças tinham ido para o espaço, seus empréstimos bancários
para a estratosfera. Houve confrontos. Os manifestantes jogavam
pedras no Parlamento, e contra a polícia. Além de pedras, bolas de
neve...
A
polícia respondeu com gás pimenta e às vezes gás lacrimogênio.
Houve prisões e feridos, mas felizmente nenhuma vítima fatal.
No
empurra-empurra, o governo conservador, no poder há duas décadas
(do Partido Independente), caiu. Subiu uma coligação de esquerda,
com os Social-Democratas, os Verdes de Esquerda, e mais os Partidos
Progressista e Liberal. E as coisas começaram a mudar.
Sim,
o governo usou do socorro do FMI. Mas não sua cartilha. Plebiscitos
recusaram que os cidadãos pagassem as dívidas contraídas em seu
nome, mas sem seu consentimento. O caso está em pendência
internacional: Reino Unido e Holanda exigem que seus investidores nos
bancos islandeses sejam ressarcidos pelo país. O país se recusa.
O
novo governo reergueu o sistema de seguridade social. Nacionalizou os
bancos quebrados, renegociou as dívidas de pequenos e grandes
empreendedores, impediu que eclodisse aqui a quebradeira que está
devastando Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia, Itália.
E
tomou uma medida originalíssima. Convocou uma Assembléia
Constituinte exclusiva, para revidar a Carta Magna do país, adotada
depois da independência, em 1944. Mil e duzentos escolhidos ao azar,
a partir das listas de eleitores, mais 300 representando setores
empresariais, de trabalhadores e outros grupos organizados. Dessa
assembleia saiu um fórum de 950 pessoas e um documento de 700
páginas que deveria balizar a nova Constituição. O passo seguinte
foi a escolha de 25 cidadãos, sem definição de partido, que
deveria redigir o anteprojeto de Constituição. Depois de um
processo de ampla consulta pela internet, esse Grupo de Trabalho
apresentou o anteprojeto ao Parlamento. E criou o referendo que no
sábado foi a voto, em torno de seis questões.
1)
Se a proposta apresentada deveria ser a base da Nova Constituição.
Sim, 66,3%, Não, 33,7%. (O Partido Independente, do antigo governo
conservador, pediu o "Não").
2)
Se os recursos naturais deveriam ser estatizados. Sim, 82,5%, Não,
17,5%.
3)
Se o Estado deveria ter uma religião oficial (no caso, a Luterana).
Sim, 57,5%, Não, 42,5%.
4)
Se deveria ser permitida a eleição de indivíduos sem partido para
o Parlamento. Sim, 77,9%, Não, 22,1%.
5)
Se o peso dos votos deveria ser igualmente distribuído pelo país.
Sim, 63,2%, Não, 36,8%.
6)
Se um grupo numericamente considerável de cidadãos deveria ter o
poder de pedir referendos. Sim, 72,2%, Não, 27,8%.
Compareceram
49% dos eleitores, 107.570 votantes. O número ficou abaixo do
esperado, mas foi considerado significativo para que o Parlamento o
leve em conta na futura votação definitiva da nova Constituição.
Enfim,
na contramão da Europa continental, houve nesta Islândia uma
pequena revolução antineoliberal. Que ninguém, na Velha Mídia,
brasileira e mundial, quer ouvir ou ver.
Ah,
sim, last but not least. Desde 2009 houve uma devassa no sistema
bancário e no antigo governo. O ex-primeiro ministro está preso,
acusado de negligência no poder. Executivos de colarinho branco
também.
A
Islândia se recuperou. Tinha moeda soberana, que foi desvalorizada
(ao contrário dos países encalacrados com o euro). O desemprego
caiu para 6% em 2012.
Até
o FMI (!) elogia a recuperação da Islândia.
Enquanto
isso, o restante da Europa continua agrilhoada à insensata "nau
da austeridade".
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